Reportagem publicada no jornal Folha de São Paulo nesta terça-feira (22) aponta que clubes paraibanos fraudam notas para inflar repasse de dinheiro público no estado. Segundo a publicação, pessoas de outros estados, que nunca sequer vieram à Paraíba, têm seus nomes registrados como torcedores em partidas do campeonato paraibano.
Os documentos constam que essas pessoas são beneficiárias do programa Gol de Placa, programa do governo estadual que paga ingresso para os torcedores.
Confira reportagem na íntegra:
No início da noite do dia 12 de janeiro, Edson Willian Piotto voltava de um passeio com os cachorros em Jaraguá do Sul (SC). Na mesma hora, Marciano Cruz da Silva assistia a um culto na mesma cidade. Dimitry da Silva Oppa, por sua vez, descansava em casa em Joinville após uma tarde de pescaria.
Os três nunca foram à Paraíba. Mesmo assim, foram registrados como torcedores que estiveram naquela noite no estádio José Cavalcanti, assistindo à vitória do Nacional de Patos sobre o CSP, por 2 a 1, pela rodada de abertura do Campeonato Paraibano.
Morando a mais de 3.000 km de distância da cidade de Patos, eles constam como beneficiários do programa Gol de Placa, criado em 2005 pelo governo estadual para financiar os clubes locais em troca de renúncia fiscal de empresas. Pelas regaras do programa, o torcedor ganha um ingresso a cada R$ 50 apresentados em notas fiscais do estado. O benefício vale para todas as partidas do Paraibano.
Neste ano, o governo anunciou que vai destinar uma receita recorde. Serão R$ 4,1 milhões. A verba é a principal fonte de renda para os dez times que disputam o Estadual.
De acordo com documentos da Secretaria de Estado da Juventude, Esporte e Lazer, aos quais a Folha teve acesso, advogados catarinenses e beneficiários de programas sociais longe da Paraíba assistiram ao jogo em Patos. A maioria tem seus dados cadastrais disponíveis na internet.
“Adoro futebol, mas nunca pisei na Paraíba. Acabei virando um torcedor fantasma”, disse Piotto ao ser questionado se havia assistido à partida no sertão paraibano. Além do nome, o CPF do advogado consta na lista enviada pelo Nacional ao governo cobrando parte da sua verba no programa.
A fraude foi tão escancarada que os dirigentes do Nacional de Patos usaram notas fiscais de apenas um posto de gasolina para lançá-las no sistema do programa. O estabelecimento fica em João Pessoa, distante mais de 300 km da cidade.
Segundo o registro, 1.308 ingressos foram trocados no mesmo dia da partida por notas emitidas pelo posto da capital. Os cupons totalizaram R$ 71.167,80.
O número de torcedores é inflado para aumentar o montante que o clube recebe de empresas que ganham desconto no recolhimento de ICMS para pagar os ingressos adquiridos com notas fiscais.
De acordo com a lei, até 5% da fatura da empresa com o ICMS é deduzido. Até agora, apenas a Energisa, empresa de energia que atua no estado, participa do Gol de Placa.
O borderô da partida publicado no site da Federação Paraibana de Futebol mostra números divergentes. Pelo documento, 1.620 torcedores que ganharam os ingressos pelo programa entraram no estádio. No documento, os bilhetes subsidiados renderam ao time local uma receita de R$ 25.200, o que equivale a 78% da renda de R$ 32.280 contabilizada pelo clube. Cada bilhete trocado no programa é contabilizado com o valor de R$ 20 no borderô.
Excluindo os “fantasmas”, apenas 354 torcedores pagaram para assistir ao jogo.
O procedimento do Nacional de Patos não é um caso isolado. No mesmo dia, o Serrano foi derrotado pelo Atlético de Cajazeiras com o estádio praticamente vazio. Mesmo assim, o time cadastrou 484 cupons trocados.
Pelo boletim financeiro da partida publicado no site da federação, o Serrano vendeu apenas 47 ingressos na bilheteria e teria arrecadado somente R$ 740. Com ajuda do programa, o time de Campina Grande faturou mais R$ 10.400. A maioria das notas foi trocada no dia da partida e emitida por uma posto de gasolina na própria cidade.
Na plataforma da secretaria de esportes, os funcionários que fazem os registros zombam ao cadastrar os torcedores “fantasmas”. Um deles foi identificado pelo Serrano com o nome de “Rafael da Abunda Que Nem Sente”.
Nas seis primeiras partidas do torneio, 6.018 ingressos do “Gol de Placa” foram trocados rendendo R$ 77.796 de arrecadação aos clubes. Dos seis mandantes das primeiras partidas da competição, apenas o Treze não usou o programa.
“É impressionante saber que fui usado desta forma”, disse Piotto, que é funcionário público em Jaraguá do Sul e vai entrar na Justiça cobrando uma indenização do governo local.
A prática de inflar o público dos jogos com torcedores “fantasmas” não é rara no futebol paraibano.
Clube mais popular em João Pessoa, o Botafogo foi um dos destaques de público do futebol nacional no ano passado. Turbinado pelo “Gol de Placa”, o time declarou em seus borderôs uma média de 5.433 torcedores por partida no ano, superior a Coritiba e Ponte Preta.
Documentos obtidos pela Folha revelam que em 2015 o time alvinegro trocou mais de 4.000 ingressos do programa em apenas uma partida e não pediu autorização ao governo, como determina a legislação.
Segundo a relação feita pelo Botafogo, 1.605 fãs assistiram com o “Gol de Placa” ao jogo que marcou a primeira rodada da competição daquele ano.
A lista inclui beneficiados em um programa habitacional em Brasília e aprovados em curso promovido por uma ONG em parceria com a Prefeitura do Rio.
Na abertura do campeonato deste ano, o público do Botafogo despencou. Na goleada sobre o Perilima, por 4 a 1, no dia 12, a diretoria do time informou que apenas 19 pessoas foram beneficiadas pelo programa das 507 que assistiram ao jogo no estádio, pouco mais de 10% dos torcedores que comparecerem na mesma rodada no ano passado.
A queda de torcedores abriu suspeitas sobre uma possível fraude nos números registrados até o ano passado. “Nunca ouvi falar nesse programa”, disse a professora Luciana Freire, 40, após comprar quatro ingressos para o jogo de abertura do torneio. Ela costuma assistir aos jogos do Botafogo no Almeidão com a família inteira. A professora mora em Juarez Távora, cidade localizada a 100 km da capital.
De acordo com a lei, os clubes precisam disponibilizar e divulgar os pontos de troca dos ingressos para o programa.
Dezenas de torcedores desconheciam a possibilidade de conseguir o ingresso mediante a apresentação de notas fiscais. A reportagem conseguiu trocar o bilhete ao apresentar uma nota fiscal em uma loja do Botafogo na praia de Tambaú no dia anterior ao jogo.
Mesmo assim, o câmbio do ingresso não foi informado na plataforma oficial do programa.
O futebol da Paraíba atravessa uma das maiores crises da sua história. Dirigentes da federação e dos clubes foram afastados do futebol em abril do ano passado acusados de integrar um esquema de manipulação de resultados.
Gravações revelaram dirigentes negociando o pagamento para árbitros e adversários.
GOVERNO E FEDERAÇÃO AMEAÇAM PUNIÇÃO
O Governo da Paraíba informou que está “pronto para adotar todas as providências cabíveis em caso de desrespeito da regularidade e legalidade” do programa Gol de Placa.
O cadastro com o nome de torcedores falsos é feito pelos clubes na plataforma do programa comandado pela Sejel (Secretaria de Juventude, Esporte e Lazer).
De acordo com a lei, a Controladoria do Estado é responsável por fiscalizar o programa. O órgão tem poder de punir os clubes se as prestações de contas não estiverem de acordo com o estabelecido na legislação. Até agora, nenhum deles foi punido.
Questionado sobre a responsabilidade da Controladoria, o governo não se pronunciou.
Na nota, a secretaria preferiu repassar a culpa para a Federação Paraibana de Futebol e para a CBF, organizadores das competições disputadas pelos clubes do Estado.
O governo informou que a “Sejel homologa e encaminha as informações para a Secretaria da Receita” após a recebimento do borderô emitido pela CBF ou pela federação, junto com o relatório de utilização e distribuição de ingressos.
A Federação Paraibana de Futebol, por sua vez, informou que “não tem qualquer poder de fiscalizar e não tem qualquer ingerência no referido programa”. Em nota, a entidade afirmou “que não faz parte do programa, o qual repita-se, possui apenas duas partes: de um lado o governo e de outro lado os clubes”.
Eleita há três meses, a nova diretoria da federação informou que “adotou como medida preventiva um Termo de Assunção de Responsabilidade”, em que todos os clubes se responsabilizam “fiscal, civil e criminalmente pelas informações relativas aos torcedores beneficiados com o programa”.
A federação ainda afirmou “que não compactua com nenhuma irregularidade que venha a ser praticada por qualquer clube, a qualquer título, e que caso venha a receber qualquer denúncia de fraude no programa Gol de Placas, irá encaminhar imediatamente ao Governo do Estado da Paraíba, à Polícia Civil, ao Ministério Público Estadual e ao Tribunal de Contas Estadual, autoridades competentes para apurar tais condutas delituosas”.
A entidade anunciou ainda a criação de um disque denúncia, através de número 0800 e pela internet.
De acordo com a lei, caso a fraude seja comprovada, os clubes terão que devolver os recursos. A multa poderá inviabilizá-los financeiramente.
Patrocinadora do programa Gol de Placa, a Energisa Paraíba informou que vai cobrar explicações da Secretaria Estadual da Fazenda ao tomar conhecimento do teor da reportagem.
Em nota, a empresa também disse que quer “esclarecer os fatos e avaliar possíveis medidas cabíveis”.
A Energisa Paraíba repassa parte do ICMS arrecadado pela empresa aos clubes de futebol profissional do estado que disputam a primeira divisão do Paraibano, torneios nacionais e regionais no limite de 5% determinado pela legislação.
Como parte do programa, a Energisa recebe, mensalmente, um documento da Secretaria da Fazenda determinando o valor do repasse a ser feito aos clubes. A empresa não informou quanto já repassou desde 2005, quando o programa começou.
O Grupo Energisa atua em 11 estados e é um dos maiores pagadores de ICMS da Paraíba. Em 2014, o Estado arrecadou R$ 350 milhões com a empresa.
A Folha não conseguiu contato com os dirigentes do Serrano e do Nacional de Patos e nem com os donos dos postos de gasolina que emitiram notas fiscais para torcedores fantasmas. O Botafogo-PB foi contatado, mas ainda não respondeu.
De acordo com o advogado Rodrigo Fragoso, os dirigentes podem, em tese, responder na Justiça por dois crimes: estelionato e inserção de dados falsos em sistema de informações.
A pena para o primeiro caso é de um a cinco anos de prisão. Já para o segundo a pena é mais pesada. A condenação pode chegar a 12 anos de detenção.